quinta-feira, junho 28, 2007

ato findo


ato findo o amor
é um longo e extenuante abraço
casulo vazio de vida
como as borbulhas em vão
de um afogado que se enreda em algas
e ninguém vê
e ninguém pode imaginar
que há beleza em se esvair
em se deixar levar

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Carlos Henrique Leiros

[dreaming (ilkka keshinen)]

terça-feira, junho 19, 2007

a flor exangue


Primeiramente a haste se prolonga no espaço
E desabrocha como paz fracionada
Em lâminas que transbordam gentileza
São olhos abertos numa réstia de nuvem
Sob nossos pés que, curiosos, cismam
De esmagar a flor

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Carlos Henrique Leiros

[flower (robert mapplethorpe)]

sexta-feira, junho 15, 2007

algumas palavras sobre a estrada do sol



é de manhã
vem o sol
mais os pingos da chuva que ontem caiu
ainda estão a brilhar
ainda estão a dançar
ao vento alegre que me traz essa canção...

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Quando criança, estes versos cantados por meu pai me pareciam insípidos. Também pudera! Poesia tinha algo de maçante naqueles tempos, e a infância era como um mapa sem fronteiras, uma vasta extensão de terra por onde eu podia caminhar sem risco, sem surpresas. Germinavam em mim ânsias de estar no topo do mundo, com rosto imberbe e tudo, cabelos longos partidos ao meio, na bicicleta que não conhecia enfado. E a receita da felicidade estava na ponta da língua.
Meu pai cantava a Estrada do Sol, gravação que ele tinha na voz da divina Elizeth Cardoso. Era feliz com algum grisalho nos bigodes, dirigindo nossa wagon e tamborilando os dedos no volante Deus meu, uma poesia, sim, mas para mim tão fora de moda, cheirando a naftalina. Tudo, porém, desvaneceu-se com o passar do tempo, a inocência infantil e as rusgas bobas sobre a Estrada do Sol. Perdeu-se a velha fita cassete com a gravação. Mas não varri a música da memória. Faz um bem danado lembrar.

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...vamos sair por aí
sem pensar no que foi que sonhei
que chorei, que sofri
pois a nossa manhã
já me fez esquecer
me dê a mão, vamos sair pra ver o sol
o sol...o sol...

Ch

[reflections (arthur negus fuller)]

domingo, junho 10, 2007

a escrita


A arte de escrever me apareceu quase como um instinto, uma espécie de teima consciente. Penso ser natural que após dominar a fala e a leitura, o passo seguinte seja aprender a escrever. Não feito um autômato que, programado para obedecer algumas regrinhas, ponha-as em prática numa atividade qualquer. Mas que num dado momento, faça a alma uma coneção com a memória e o resultado seja, enfim, a idéia expressa e encadeada.
Hoje eu costumo pensar em versos, embora não tanto em rimas. O exercício do olhar poético acabou me transformando numa pessoa que aprendeu, antes de tudo, a se enternecer com mínimas coisas. Coisas que ao raciocínio mundano parecem sem importância.
Sabe-se que a articulação perfeita das palavras possui força incomensurável, e é justamento isso que me toca. A ocasião suprema, os instantes em que a poesia nas palavras e nos gestos é capaz de tolher a voz.
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Ch


[graphitte on paper (doris hutton auxier)]

quinta-feira, junho 07, 2007

uma vontade vinda do nada



Deu-me hoje uma vontade quase incontrolável de ouvir Ma Kelly’s Greasy Spoon, do Status Quo. Não que o Status Quo signifique alguma coisa de importância vital. Longe disso. É um álbum tão comum que às vezes parece colidir com a mediocridade, se formos levar ao pé da letra aqueles arranjos simplórios, a colcha rítmica indolente, os vocais quase sem nenhum atrativo. Contudo, a despeito de todos estes senões, eu quis ouvir Ma Kelly’s Greasy Spoon. Poderia chamar de um surto bobo de nostalgia, uma tentativa deliberada e estapafúrdia de submeter os ouvidos a uma sonoridade opaca, que não causa enlevo ou deleite. Meu comportamento cabe em qualquer adjetivo malsão. Mas eu quis ouvir o disco. E ouvi.
Confesso que gosto do título e da capa. Remete-me àqueles restaurantes ingleses suburbanos, que servem enguias e miúdos de ovelha no cardápio, ao burburinho de transeuntes motejando um forte acento cockney “cuz i luv yu” e bla-bla-blá. Sinto-me inserto neste ambiente, e o nome soa como se mantra fosse...ma kelly’s greasy spoon, ma kelly’s greasy spoon...
A capa é linda, com aquela senhora Ma Kelly de cigarro pendente da boca, num balcão grudento. Seu rosto é vincado de tristeza, como se estivesse condenada a um ofício menor por todas as existências. Afinal de contas, são anos e anos atendendo proletários fugidos do fog de final de tarde. O bar sempre é a última parada. Há muitas mágoas por encharcar.
Quando o disco toca, o que se ouve é Blues de branco cheirando a simplicidade. Um mergulho na alma daquela gente de capotes puídos e mãos castigadas.

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Ch

domingo, junho 03, 2007

twisted


vê-se a escada da miséria

fauces hirtas...famulentas

enquanto pratos sobejam

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[him, # 1(Ijeoma Iheanacho)]